Antes de mais nada, uma apresentação digna: a nossa protagonista atende pelo nome científico Araucaria angustifolia, mas todo mundo chama de pinheiro-do-paraná. Não é pinheiro de Natal europeu; é uma conífera sul-americana que domina o cenário quando aparece, com seu tronco ereto e uma copa que se abre em andares, como se alguém tivesse desenhado círculos concêntricos no céu. Essa imagem, aliás, não é só paisagem — é geografia pura, porque onde a araucária prospera a gente também enxerga altitude, clima subtropical com invernos frios, geadas e, não raro, neve em topos de serra. É a tal da Floresta Ombrófila Mista, o nome técnico para a “mata com araucária”, uma das caras da Mata Atlântica no Planalto Meridional (Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e pontinhas de São Paulo e Minas). A ciência classifica essa formação dentro do bioma Mata Atlântica e explica que ela ocorre justamente onde a combinação de altitude, solo e umidade dá certo — um capítulo inteiro da Embrapa descrevendo distribuição natural, clima e relevo confirma isso com mapa, clima e citação de IBGE (Floresta Ombrófila Mista) e Planalto Meridional como palco preferido.
Mas a araucária é muito mais antiga que os mapas e as nossas fronteiras. Há uma longa conversa entre clima e floresta no Sul do Brasil: estudos palinológicos (aqueles que analisam pólen preservado em sedimentos) mostram que, em períodos mais frios do passado, a araucária se expandiu; em períodos mais quentes, recuou. Esse vai-e-vem geológico ajuda a entender por que ela se dá tão bem em topos e serras frias, onde a geada não é exceção, é regra. Hoje, a ecologia descreve essa floresta com um elenco grande de coadjuvantes de respeito — imbuia, canelas, erva-mate, mirtáceas, podocarpos — mas o papel de protagonista, o que marca a fisionomia da paisagem, é dela. E não é só estética: a araucária derrama pinhas gigantes que, quando se abrem, liberam sementes carnudas e energéticas, os pinhões. Esses “pacotinhos de calorias” sustentam uma cadeia de vida no outono/inverno — de cutias e porcos-do-mato a papagaios e, claro, a famosa gralha-azul (Cyanocorax caeruleus), ave-símbolo do Paraná, que enterra pinhões para comer depois e, sem querer querendo, planta araucárias pelo caminho. Trabalhos acadêmicos e textos de divulgação apontam essa parceria como fundamental: menos araucária significa menos pinhão, que significa menos dispersão — um tombo em cadeia que afeta a floresta inteira.
Agora, vamos de História. Muito antes de ferrovias e serrarias, o pinhão era protagonista na dieta e no calendário cultural dos povos Jê meridionais — em especial os Kaingang — e também dos Guarani e dos Laklãnõ/Xokleng. Relatos etnográficos descrevem como o ciclo do pinhão organizava deslocamentos, festas e trocas, com a coleta marcando o tempo “certo” de estar em tal lugar. O pinhão era base de alimentação, mas também moeda social; a araucária, por sua vez, é figura de cosmologia kaingang, com status de “pessoa” na cosmo-ontologia tradicional. Levar a sério essa antiguidade muda nossa lente: a araucária não é só “recurso”; é eixo de um modo de vida. Textos do Instituto Socioambiental sobre os Kaingang, estudos sobre alimentação tradicional e memórias kaingang do Paraná ajudam a traçar esse quadro: pinhão como item central, trajeto de coleta, troca e partilha, e a árvore como parente — não apenas “madeira em pé”.
Quando chegam os ciclos econômicos coloniais e republicanos, a história dá um giro brusco. Primeiro, com a erva-mate e, logo depois, com a madeira, a araucária entra na lógica do “boom and bust”: serrarias pipocam, ferrovias ganham trilhos e a floresta vira tábuas, dormentes e exportação. O chamado “ciclo da madeira” teve epicentros conhecidos — áreas do Contestado e cidades como Caçador, Irati, Lages e tantos núcleos do planalto — e foi tão intenso que, em poucas décadas, o “mar de pinheiros” virou mosaico de fragmentos. Artigos e livros sobre a exploração madeireira no planalto sulino e no Paraná narram essa virada com dados de produção, mercado externo e a marcha da devastação ao longo do século XX, chegando ao auge nos anos 1970 e, depois, ao esgotamento da matéria-prima nativa por falta de reposição. A ferrovia, que acelerou a economia, foi tanto artéria de desenvolvimento quanto esteira da derrubada.
Esse passado explica por que, hoje, o que resta da Floresta com Araucária é pouco e muito fragmentado. Há números para gravar na memória: a literatura de conservação aponta que os remanescentes dessa formação são minoria frente ao original, espalhados em pedacinhos menores que 50 hectares, cercados por campos cultivados e pastagens, o que dificulta a regeneração natural e a manutenção da biodiversidade. Embora números variem conforme a metodologia e a escala, a mensagem é sempre a mesma: o que sobrou é precioso e frágil. (O próprio verbete técnico sobre Floresta Ombrófila Mista descreve esse quadro de fragmentação e a necessidade de unidades de conservação e de gestão dos fragmentos privados.) A isso se soma uma pressão nova: a mudança do clima. Pesquisas recentes do NAPI Emergência Climática, no Paraná, projetam a perda de até 84% do habitat climático adequado para a araucária até 2090, o que liga o alerta não apenas para a árvore, mas para toda a rede ecológica que depende dela — inclusive a gralha-azul. Universidades paranaenses vêm divulgando esses cenários e pesquisando “refúgios climáticos” onde a espécie ainda possa persistir no futuro.
Dito isso, como é que a araucária virou símbolo do Paraná e do Sul? A resposta mistura geografia, afeto e política pública. Visualmente, a araucária é a marca do planalto paranaense — quem chega à região de Curitiba, Campos Gerais, Centro-Sul e Sudoeste reconhece as silhuetas no horizonte. Culturalmente, ela tempera a mesa: o pinhão é o petisco do outono/inverno, vai ao cozido, vira farinha, entra na paçoca, acompanha chimarrão e fogueira. E simbolicamente, a árvore virou emblema: é reconhecida como símbolo de Curitiba e do Paraná em comunicações oficiais e no senso comum, aparece em brasões, marcas e na toponímia (Araucária é, inclusive, nome de município na Grande Curitiba). Essa “elevação” a símbolo ganhou musculatura jurídica recente: Curitiba editou um decreto específico (597/2023) para incentivar a preservação de araucárias em imóveis urbanos, oferecendo benefícios construtivos quando a presença da árvore limita o aproveitamento do lote — uma maneira prática de transformar o discurso de valorização em regra do jogo urbano. A própria prefeitura, ao explicar o decreto, reforça: 24 de junho é celebrado como o Dia Nacional da Araucária, mais uma peça no calendário de valorização. E na política estadual, propostas de novas regras de compensação ambiental para araucária circulam na Câmara Municipal, sinal de que o tema segue vivo.
Se a araucária é símbolo, o pinhão é festa — e isso literalmente. Lages (SC) celebra anualmente a Festa Nacional do Pinhão, que reúne música, gastronomia e um acento forte no tradicionalismo serrano, movimentando a cidade por semanas e virando vitrine da cultura da serra. Em 2025, por exemplo, a festa correu de 6 a 22 de junho, colada no feriado de Corpus Christi, com dezenas de atrações no Recanto do Pinhão e shows de grande público. Esse tipo de evento costura economia criativa, turismo e educação ambiental. Outras cidades serranas, como São Francisco de Paula (RS), também organizam festas do pinhão, e todas elas acabam reforçando, para visitantes e moradores, a ideia de que “essa árvore é nossa”.
Mas símbolo sem proteção vira só saudade. Então, como o Brasil protege a araucária hoje? Há camadas. No guarda-chuva nacional, a Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), regulamentada pelo Decreto 6.660/2008, impõe regras rígidas para supressão e uso de vegetação nativa desse bioma — e a Floresta com Araucária, como parte da Mata Atlântica, está dentro dessa proteção. Na prática, isso quer dizer que cortar araucária em área de vegetação nativa exige licenciamento ambiental específico, análise de estado de conservação, compensações e, muitas vezes, é proibido. O mapa oficial de aplicação da Lei da Mata Atlântica, do IBGE, inclui a Floresta Ombrófila Mista e serve de referência para onde as regras valem. Além disso, a espécie Araucaria angustifolia está listada como ameaçada na Lista Vermelha global da IUCN (categoria “Criticamente em Perigo”, CR) — um carimbo internacional que reforça a necessidade de proteção — e também integra a lista brasileira de flora ameaçada (Portaria MMA n.º 443/2014 e atualizações subsequentes; em processos de revisão, a araucária permanece entre as espécies com alto risco). Essa sobreposição — bioma protegido por lei específica e espécie ameaçada — cria um cercado jurídico e técnico robusto para evitar que a araucária vire só lembrança.
No nível estadual e municipal, surgem instrumentos complementares. O decreto de Curitiba que citei resolve uma dor de cabeça comum de quem quer construir num lote com uma araucária “bem no meio”: ele permite condições especiais de ocupação para manter a árvore em pé, em vez de transformá-la num estorvo e justificar a supressão. Em paralelo, serviços de licenciamento ambiental orientam poda, corte e transplante — com respostas bem claras do tipo “não pode” quando a árvore não apresenta risco e está protegida por lei. Em âmbito estadual, o Paraná vem publicando normas técnicas (como instruções do IAT) e instituindo câmaras técnicas florestais para qualificar as análises de supressão de vegetação, o que, no mundo real, significa mais olhar técnico e menos improviso quando alguém pede autorização para mexer numa araucária. Essas engrenagens administrativas, por mais burocráticas que pareçam, são o que transformam boas intenções em decisões concretas no dia a dia.
A proteção também acontece no tempo, não só no espaço. Um exemplo simpático — e importante para a sustentabilidade da espécie e da fauna — são as regras sazonais para a coleta e comercialização do pinhão. Estados como Paraná e Santa Catarina apertam a fiscalização para impedir a venda de pinhão “verde”, antes da maturação, porque isso detona duas frentes ao mesmo tempo: os animais que dependem da semente no inverno e a própria regeneração da araucária (pinhão colhido cedo não germina bem, e menos pinhão no chão significa menos “plantio” feito pela fauna). Decretos e portarias estaduais costumam fixar datas de início da comercialização (variáveis a cada ano, conforme as condições), e as prefeituras reforçam a vigilância em feiras e mercados. Parece detalhe, mas é ecologia aplicada no tomateiro do seu Zé: só vender quando está no ponto.
E por que tudo isso importa para a Geografia — e para o seu leitor leigo que quer entender “como a árvore moldou as terras do Sul”? Porque a araucária é um daqueles casos em que natureza e sociedade se trançam de um jeito que dá para ver no mapa. Foi em torno da mata com araucária que surgiram “ilhas” de agricultura e pecuária com inverno mais frio, que ferrovias buscaram madeira e, em troca, plantaram colônias de imigrantes. A urbanização de cidades como Curitiba e sua Região Metropolitana carrega, no nome e na paisagem, essa herança. O fim do ciclo da madeira empurrou a economia para outros setores — reflorestamento de pinus e eucalipto, indústria moveleira, papel e celulose — reconfigurando fluxos e cadeias produtivas, mas deixando para trás uma conta ambiental pesada que hoje a gente tenta pagar com restauração ecológica e com um mix de unidades de conservação, reservas particulares e manejo de fragmentos em propriedades rurais. No meio disso, a nostalgia vira uma alavanca: quando a população reconhece a araucária como “nossa”, ela pressiona por parques, trilhas, viveiros e leis mais inteligentes.
Conservar, no entanto, não é só cercar e proibir. A araucária tem truques e exigências: suas sementes são “recalcitrantes” (odeiam secar), o que complica armazenamento em viveiro e logística de plantio; a dispersão natural depende de bichos que também precisam de habitat; e a regeneração é lenta, exigindo luz controlada e proteção contra gado e fogo. Guias técnicos da Embrapa orientam manejo e plantio (inclusive poda para fins de madeira de qualidade em plantios comerciais), e há uma conversa crescente sobre como unir restauração ecológica com sistemas produtivos de base comunitária — incluindo o uso do pinhão como alimento e fonte de renda, sem detonar a árvore-mãe nem a fauna. Quando uma gralha-azul enterra um pinhão num lugar favorável e esquece onde guardou, ela está trabalhando de graça para a floresta; nosso papel é garantir que ainda haja lugares favoráveis, corredores ecológicos e pinhões maduros para esquecer.
A mudança do clima adiciona uma camada extra de estratégia. Se as projeções de perda de habitat climático se confirmarem, preservar apenas “onde a araucária está hoje” pode não ser suficiente; será preciso identificar refúgios climáticos (altitudes e exposições onde, mesmo mais quente e seco, as condições sigam adequadas) e desenhar restauração e corredores pensando no futuro, não só no passado. Iniciativas como o NAPI Emergência Climática, no Paraná, já falam a língua da adaptação, cruzando modelagem climática, mapeamento e políticas públicas. É ciência batendo na porta do planejamento territorial — e deveria ser música para os ouvidos de quem faz gestão ambiental, licenciamento e zoneamento.
E, por favor, nunca esqueçamos o fio cultural. Para Kaingang, Guarani e Laklãnõ/Xokleng, a araucária não é “só” biodiversidade: é história viva, alimento e parentesco. Incluir comunidades indígenas nos programas de restauração e manejo não é gesto de marketing; é eficiência ecológica e justiça histórica. Quem sabe há séculos “ler” o ritmo do pinhão e o tempo da araucária pode (e deve) conduzir projetos que devolvam continuidade cultural e equilíbrio ecológico ao mesmo tempo. As memórias kaingang no Paraná e estudos etnográficos são claros: quando a floresta volta, volta também uma parte da organização social e dos saberes que dão sentido à paisagem.
Para fechar, vale amarrar as pontas com a pergunta do leitor mais cético: “Tá, mas e daí?” Daí que a araucária é um atalho perfeito para entender o que a Geografia chama de coevolução entre sociedade e natureza. Sem ela, o Sul do Brasil seria outro: outras cidades, outros traçados, outra culinária, outras palavras. Com ela, a gente ganhou uma assinatura paisagística inconfundível — e uma responsabilidade à altura. As leis que citei — a Lei da Mata Atlântica e seu decreto, as listas de espécies ameaçadas, os decretos urbanos que criam incentivos para preservar árvores em lotes, as portarias que impedem o comércio de pinhão antes da hora — são o piso. O teto é a imaginação coletiva: transformar esse símbolo em projeto. Isso envolve restaurar matas ciliares com araucária e suas companheiras, manter corredores entre fragmentos, apoiar festas e roteiros de educação ambiental que falem de pinhão sem virar “picanha de pinhão”, fortalecer viveiros comunitários, introduzir o tema em escolas e, claro, garantir que a gralha-azul siga escondendo sementes por aí. A ciência já deu o recado de urgência; a história dá o contexto; a lei dá as ferramentas. Cabe a nós, moradores e amantes desse pedaço de mundo, fazer a parte que só gente pode fazer: escolher que horizonte queremos ver.